Meus Cumprimentos

É melhor atirar-se à luta em busca de dias melhores, mesmo correndo o risco de perder tudo, do que permanecer estático, como os pobres de espírito, que não lutam, mas também não vencem, que não conhecem a dor da derrota, nem a glória de ressurgir dos escombros. Esses pobres de espírito, ao final de sua jornada na Terra, não agradecem a Deus por terem vivido, mas desculpam-se perante Ele, por terem apenas passado pela vida...
Bob Marley

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Entendendo a Venezuela (5)

O segredo de Chávez

Finalmente voltei ao “meu mundo”, à realidade fantasiosa das classes médias latino-americanas, à realidade de gente que vive rodeada de miséria, de indignidade, de violência, de uma injustiça quase sobrenatural, de tão impressionante, mas que age como se nada do que a rodeia existisse. Agora estou em “meu mundo”, num shopping da “urbanización” de Chacao, o elegante “Sambil”. Estou sentado num cibercafé degustando uns acepipes, bebericando um vinho honesto, ouvindo uma balada americana que não identifico e dedilhando no computador uma das experiências mais profundas de minha vida.
Estou de volta ao Primeiro Mundo, mas, há cerca de uma hora, estava na América Latina, no bairro Libertador, no morro caraquenho Propatria, um morro como costumam ser os morros das cidades latino-americanas, isto é, apinhado de barracos precários e de casas semi-terminadas que espremem uns aos outros, reduzindo o que deveriam ser ruas a umas vielas absurdamente estreitas, sujas, com escadarias que parecem terminar no céu, cheias de emendas, rachaduras, buracos, cocô de cachorro (espero); com degraus sobrepostos de forma desigual, o que torna o ato de galgá-los um martírio para os menos atléticos como este que escreve.

Eu estava na casa de Henry, recepcionista do hotel em que estou hospedado, o único partidário assumido de Chávez que encontrei na Caracas baixa, no centro expandido da capital venezuelana, que fica aos pés da constelação de morros que envolvem a cidade. Estou de volta a uma parte da cidade em que é difícil encontrar chavistas assumidos, numa parte em que não vivem mais do que uns vinte por cento dos caraquenhos. Estou voltando dos morros, de onde estão uns oitenta por cento da população, onde difícil mesmo é encontrar aqueles que a ralé venezuelana chama de “esquálidos”, ou seja, os anti-chavistas.

Saí com Henry às sete da manhã, quando terminou seu turno na portaria do hotel. Ele não se sentia bem, estava resfriado por causa do ar-condicionado do lobby, pois o gerente deixou a refrigeração ajustada “no último” e ordens para o subordinado não diminuir a intensidade. Assim mesmo, com o estoicismo dos humildes, levou-me para conhecer seu mundo.
A viagem de metrô foi longa, porque um trecho do percurso, na direção da estação que leva o nome do morro onde meu guia vive (estação Propatria), está interditado. Assim, os passageiros que vão naquela direção precisam desembarcar do trem, tomar um ônibus e depois reingressarem no metrô duas estações depois.
Chegando à estação Propatria começa a parte difícil da viagem. Tem-se que tomar camionetas Toyota modelo “Land Cruiser” com pelo menos umas três décadas de fabricação, caindo aos pedaços. O pior é que essas camionetas têm os bancos dispostos de costas para as laterais do veículo. Nesses bancos, cabem (espremidas) umas cinco pessoas de cada lado. Conforme a camioneta começa a escalar o morro, os passageiros sentados ao lado daqueles que estão logo atrás dos bancos da frente têm que arcar com o peso dos outros sobre a lateral de seus corpos. A pior situação é a de quem senta perto das portas da traseira do veículo, por onde ingressam os passageiros, pois acabam sendo espremidos contra uma das portas pelas quatro pessoas sentadas ao lado. Isso sem falar que são veículos com janelinhas pequenas, geralmente com defeito (que não abrem) e o calor, no Caribe venezuelano, é de matar. Que claustrofobia, que suadouro!
Depois de uns quarenta minutos, chega-se ao fim da viagem. Há que subir as escadarias das vielas driblando as fezes caninas, os buracos e as rachaduras dos degraus com passos largos, pois são degraus altos demais. Para os idosos e crianças menores, deve ser uma tortura voltar para casa.

Quando cheguei à casa de Henry, tive três surpresas. A primeira, foi porque não tive um enfarto; a segunda, foi porque a porta da casa dava para o teto, onde me informaram que estava sendo construída a sala; e a terceira, foi porque estava sendo esperado por nove pessoas. Henry reuniu vizinhos para falarem comigo. Esperavam-me todos bem vestidos. As mulheres, discretamente pintadas, de vestido; os homens, com calça e camisa social. Fizeram fila para me cumprimentar, dizendo, cada um, seu nome. E havia, também, uma "parrillada" assando.
Depois das apresentações, enquanto comíamos, expliquei aos presentes o motivo de minha visita. Contei-lhes que estava havia quase uma semana na Venezuela e não encontrava quem se dissesse satisfeito com o governo do país e, sobretudo, quem me dissesse por que não estava satisfeito, pois nenhum dos insatisfeitos, até então, soubera expressar motivos particulares para sua insatisfação. Falavam de razões políticas ou ideológicas, mas nunca de alguma medida de Chávez que lhes tivesse piorado a vida.
As pessoas se entreolharam e se perguntaram quem falaria primeiro. Antes que alguém se dispusesse a começar, porém, pedi que me dissessem se algum entre eles era filiado a partido político. Negaram peremptoriamente. E disseram-me que eu poderia sair batendo de casa em casa e perguntando o mesmo a cada pessoa do “barrio” para ver se não obteria as mesmas respostas que me dessem. Perguntei se não havia antichavistas nos cerros. Confabularam.
-- ¿Quién es escuálido, acá?
-- Creo que Mercedes es...
-- Si, Mercedes... ¿Quiere que la llame, señor Guimaraes?
Recusei a oferta explicando que já tinha ouvido “esquálidos” demais. Aliás, vale explicar que “esquálidos” é a forma que o povo chama os anti-Chávez.

Os vizinhos de Henry me deram vários motivos, cada um, para apoiarem o que chamam de “O Processo”, a dita Revolução Bolivariana de Cháves, mas vou reproduzir apenas uma razão por pessoa, porque não consegui anotar tudo.
· Alvaro, 53, pedreiro, relata que é colombiano e vive na Venezuela há 30 anos e só depois que Chávez chegou ao poder conseguiu nacionalizar-se, a fim de obter direitos de cidadão venezuelano, tais como ter acesso a programas sociais, aposentadoria, atendimento médico etc. Relatou que, antes de Chávez, quando os partidos Copei e Acción Democrática se revezavam no poder, só quem pagasse conseguia nacionalizar-se. E custava caro.
· Gladys, 59, dona de casa, revelou que é cardíaca e precisa passar sempre por um médico, mas que antes de Chávez só havia cardiologista nos hospitais da cidade baixa, o deslocamento era difícil, as filas de espera demoravam meses. Agora, com as “misiones”, tem o módulo de médicos cubanos a 10 minutos de caminhada de sua casa e pode ser atendida sempre que necessário. E mostrou-me os vários módulos que podem ser vistos do teto da casa de Henry. São silos verdes de dois andares. Os médicos moram em cima e têm seus consultórios embaixo.
· Mariela, 36, caixa de supermercado, tem dois filhos, um de 12 anos e outro de 5. Antes de Chávez, não havia creches. Ela pagava uma vizinha para cuidar do filho mais velho. Hoje, esse garoto está numa das escolas bolivarianas, nas quais os alunos estudam das 8 às 16 horas, e deixa o filho de 5 anos numa creche do governo, na qual o menino tem atividades pré-escolares, alimentação e cuidados médicos, quando necessários.

· Lourdes, 67 anos, aposentada, estava cega pela catarata. O governo Chávez a enviou a Cuba com todas as despesas pagas. Foi operada, recebeu óculos e tem oftalmologista todos os meses para acompanhá-la.
· Maribel, 30, auxiliar de escritório, também é colombiana – há muitos colombianos vivendo na Venezuela. Vive no país desde os 11 anos. Não conseguia emprego porque não conseguia terminar o ensino médio. Como era estrangeira, não tinha direito a vaga em escola pública. Com o governo Chávez conseguiu a cidadania venezuelana e, assim, conseguiu voltar a estudar.
· Tomas, 44, tapeceiro, vive sozinho. Não tem tempo de cozinhar e não tinha dinheiro suficiente para almoçar fora. Hoje, utiliza as “casas alimentarias” do governo, restaurantes populares nos quais almoça de graça e ainda lhe dão um lanche para comer à noite.
· Ariel, 62 anos, aposentado, diz que hoje recebe sua aposentadoria em dia, depositada em sua conta bancária. Antes de Chávez, relata que seu benefício atrasava todos os meses e tinha que ficar em longas filas para recebê-lo.
· Catia, 28 anos, empregada doméstica, conta que a passagem de metrô não aumenta de preço há pelo menos uns três anos, apesar da inflação. E o salário mínimo, que está em 700 mil bolívares (mais ou menos 300 dólares), aumenta todo ano.
· Juan, 46 anos, é operário em uma fábrica de tubos e conexões. Conta que a empresa na qual trabalha costumava atrasar salários, não depositava corretamente os encargos sociais dos empregados, mas agora, com Chávez, a empresa que não depositar em dia as obrigações trabalhistas ou que atrasar salários não consegue dólares para importar matérias-primas ou qualquer outra coisa, graças à centralização do câmbio. Nunca mais o salário de Juan atrasou e os encargos sociais dos funcionários estão sempre em ordem.
Da varanda – ou do teto – da casa de Henry, tem-se uma visão de Caracas que, junto com os depoimentos dos habitantes da periferia, permite entender por que Chávez vem ganhando sucessivas eleições por margem tão expressiva. A Caracas da classe média é uma ilhota cercada de um mar de morros, com uma constelação de “viviendas” como a de meu anfitrião. Para cada caraquenho anti-Chávez deve haver uns três que são capazes de matar ou morrer por ele.
Mas fiquei intrigado com uma coisa. Não era possível que essa gente não tivesse queixas do governo. Disse-lhes que, apesar dos pesares, esses programas sociais que me citaram existem no Brasil. Talvez não tão efetivos ou abrangentes, mas o fato é que não constituem novidade a ponto de levar as pessoas a endeusarem assim o governo. A resposta que me deram foi a de que talvez no Brasil os programas chavistas não fossem novidade, mas na Venezuela, eram. Antes de Chávez, no tempo em que os partidos de direita Acción Democrática e Copei revezavam-se no poder, aquela gente toda só recebia uma coisa do Estado: desprezo.

Assim mesmo, não me satisfiz. Disse-lhes que, apesar de tudo o que me disseram, deveria haver críticas ao governo. Eles pensaram um pouco e o próprio Henry disse que tinha críticas. E todos foram unânimes em concordar com elas. Vamos às críticas de Henry.
· O governo Chávez obriga determinados servidores públicos a participarem de suas marchas contra as da oposição e da mídia.
· Alguns produtos tabelados costumam “desaparecer” e só podem ser comprados com ágio.
· Há reclamações das constantes convocações de redes nacionais de rádio e televisão que Chávez faz, pois são chatas.
São críticas contundentes, comentei com meus interlocutores. Perguntei-lhes se não achavam que, então, a oposição e a mídia tinham alguma razão nas críticas que fazem ao governo. O que me responderam foi que podem até ter alguma razão, mas outros governos tinham defeitos muito piores e não lhes davam nada. Eram totalmente abandonados pelo Estado. Disseram-me que o segredo de Chávez para ganhar o coração dos venezuelanos é o de lhes ter devolvido o que haviam perdido havia muito tempo, a esperança.


Escrito por Eduardo Guimarães dia 19/08/2007, no seu blog
http://edu.guim.blog.uol.com.br

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