Meus Cumprimentos

É melhor atirar-se à luta em busca de dias melhores, mesmo correndo o risco de perder tudo, do que permanecer estático, como os pobres de espírito, que não lutam, mas também não vencem, que não conhecem a dor da derrota, nem a glória de ressurgir dos escombros. Esses pobres de espírito, ao final de sua jornada na Terra, não agradecem a Deus por terem vivido, mas desculpam-se perante Ele, por terem apenas passado pela vida...
Bob Marley

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Entendendo a Venezuela (2)

Entender a Venezuela

Escrevo depois de já estar há alguns dias na Venezuela. Nos últimos dias, comecei a formar uma visão menos maniqueísta da realidade complicada que vige neste país. É essa visão que procurarei transmitir a vocês, na tentativa de fazer as pessoas em nosso país entenderem que apoiadores e críticos do governo de Hugo Chávez deveriam adotar uma cautela incomensuravelmente maior em relação ao que a intolerância e a total ausência de bom senso vêm produzindo na sociedade com a qual estou tendo contato.

Fazia alguns anos que não vinha à Venezuela. Não conhecia o novo prédio do aeroporto Simon Bolívar – Marquetia, destinado aos vôos internacionais. Moderno, amplo, já mostra ao visitante que chega ao país que a Venezuela atravessa um momento de expressivo incremento de sua economia. O dinheiro, na Venezuela, está literalmente jorrando, junto com o petróleo que brota do chão em abundância e permite aos venezuelanos encherem o tanque de seus carros com 2 ou 3 dólares, dependendo do tamanho do veículo.

Apesar do endurecimento das leis que o governo Chávez vem promovendo, não encontrei maiores dificuldades na imigração ou na alfândega. Os procedimentos e regras são iguais aos de qualquer outro país.

Comecei minhas investigações sobre o ânimo político do povo venezuelano já no táxi que me conduziu do aeroporto até a região de Chacao, no centro de Caracas. O veículo era um Chevrolet Impala com dois anos de uso. Um carro luxuoso, espaçoso e, por certo, caro. Faz, no máximo, uns 6 quilômetros por litro de gasolina, mas, na Venezuela, o consumo de combustível não faz diferença.

Como vocês devem ter previsto, mal a viagem de táxi começou e eu já puxei assunto com o motorista sobre política. Ele se chama Giovanni e tem 52 anos. É branco, loiro, baixinho e com um bigodinho meio cômico. Porém, mostrou-se muito simpático. E, perguntado sobre política, desandou a falar.

Para minha surpresa, um motorista de táxi, alguém que está longe de ser rico, da “elite”, mostrou um ódio a Chávez que poucas vezes vi. Disse, só para começar, que o único jeito de tirá-lo do poder será assassinando-o. Aliás, essa “solução” mostrar-se-ia cada vez mais popular entre a expressiva maioria dos venezuelanos com os quais falei sobre política nos três primeiros dias de minha viagem.

Giovanni, o motorista de táxi, revelou-me o que eu encontraria pela frente. Disse que pelo menos uns 90% dos venezuelanos pensam como ele. Perguntado por mim sobre como seria possível isso, haja vista em que Chávez acaba de ser reeleito por esmagadora maioria, argumentou, primeiro, que a última eleição, bem como todas as outras que o presidente vem ganhando há anos, foram fraudadas. As urnas eletrônicas seriam manipuladas pelo governo, pelo CNE (Conselho Nacional Eleitoral), que seria controlado por Chávez. Argumentei, então, que centenas de observadores internacionais avalizaram a lisura dessas eleições. Giovanni, visivelmente contrariado e até surpreso por ouvir alguém com “pinta” de homem de negócios “defender” o odiado “índio” Chávez, disse-me que o poder do presidente é muito grande por causa do petróleo e, por isso, ele cooptou os tais observadores. Perguntei, então, sobre o fato de que até os EUA reconheceram a vitória de Chávez. O sujeito ficou meio sem saber o que dizer e achei melhor não acuá-lo, pois estava ficando muito nervoso.

Perguntei, então, sobre a tentativa de golpe de Estado de 2002, se ele havia participado das manifestações contra o governo e se continua participando. Ele disse que sim. Ele, sua família, amigos etc. Mas garantiu-me que não houve golpe algum. Que, como a população havia se levantado contra Chávez, ele decidiu renunciar – ou fingir que renunciaria – para simular, depois, que teria havido tentativa de golpe e se fazer de “vítima”. Perguntei por que o documento que Chávez teria assinado renunciando não tinha sido mostrado na tevê. O homem voltou a se enervar e decidi parar de novo.

Antes de terminar a viagem, ainda tentei saber de Giovanni que prejuízo tão grande o governo Chávez lhe tinha acarretado para ter tanta raiva dele. O taxista havia me contado, antes de abordarmos o assunto política, que vem trocando de carro a cada dois anos, comprando sempre um carro zero, e que a gasolina, os derivados de petróleo em geral estão cada vez mais baratos e que, na Venezuela, ser taxista é um bom negócio por causa dos preços dos combustíveis. Então não resisti e insisti: por que você odeia tanto Chávez?

O taxista começou a desfiar um rosário de razões que nada tinham que ver com ele mesmo. Falou da centralização do câmbio, das estatizações das companhias de eletricidade, de telefonia e até do teleférico moderníssimo que liga Caracas ao alto de um dos morros que circundam a cidade, que foi construído por uma empresa francesa - provavelmente a mesma que administra o teleférico de Quito, no Equador. E também explicou que teme o socialismo do século XXI que Chávez diz que implantará na Venezuela, ou seja, teme perder sua casa, seu carro, os poucos bens que amealhou numa vida inteira de trabalho. Em suma: teme que a rica Venezuela se transforme numa Cuba.

Gastei todo esse espaço com o taxista Giovanni porque o discurso, as razões dele para se opor tão ferrenhamente a Chávez, para participar de manifestações que sempre trazem risco de terminarem em violência e morte, eu ouviria coisas iguais de um engenheiro, de um recepcionista de hotel, do dono de uma banca de jornal, de uns três clientes meus e acho que continuarei ouvindo o mesmo de todas as pessoas da “cidade baixa”, que, por menos que tenham, têm o que perder se a Venezuela adotar o socialismo cubano, abolindo a propriedade privada.

A Venezuela, porém, esta sendo claramente bem administrada. O país tornou-se um enorme canteiro de obras públicas, a economia está “bombando” de uma forma impressionante, a construção civil, a agricultura, uma indústria mais sofisticada – como a de meu segmento, autopeças - está florescendo devido a proteções alfandegárias que estão sendo impostas num claro processo de substituição de importações... Só para ficar no meu segmento, já se fabrica aqui tambores de freio, filtros de ar e muito mais. Está surgindo um país algo industrializado no lugar daquele que sempre viveu do petróleo.

Entender a Venezuela, então, começou a se tornar mais difícil. Por que a classe média – alta e baixa – odeia tanto Chávez? Esse dilema perdurou até que, ontem, eu visitasse um cliente da cidade de Barquisimeto, a uma hora de avião de Caracas.

O motorista da empresa me esperava no aeroporto. Fomos conversando. O rapaz, José Morales, contou-me que não se mete em política. Que não entende bem o que está acontecendo no país e que prefere não dar palpite. Só disse que está feliz porque conseguiu trabalho há três anos e que é isso o que lhe importa, e que deixa a política para quem “gosta”.

A surpresa viria de onde eu menos poderia esperar. O diretor comercial da empresa que fui visitar é um negro alto, de 37 anos. Alfredo. Simpático, inteligente, bem vestido. Sua sala, muito bem montada, com frigobar, televisão e com móveis de escritório de diretor mesmo. Mesa de tampo de granito, computador com um gigantesco monitor de cristal líquido, quadros, tapetes...

Serviram-me café, água e tratamos de negócios. Quase caí da cadeira quando o sujeito me apresentou sua proposta de importação dos produtos que comercializo. O tamanho do pedido que estaria disposto a fazer se eu aceitasse seus termos (preço, prazo de pagamento etc.) era alto até mesmo para os parâmetros de negócios no Brasil. Claro que as exigências não são fáceis de atender, mas elas se devem ao poder de compra da empresa. Assim sendo, fiquei de responder a proposta posteriormente. Fui, então, convidado a conhecer a empresa. Os estoques aéreos (sistema paletizado), os galpões forrados de mercadorias até os tetos - que ficavam, pelo menos, a uns quinze metros de altura. Empilhadeiras. Caminhões de entrega. Funcionários e mais funcionários, todos uniformizados...

Fomos almoçar, depois de uma manhã inteira trabalhando duro. No restaurante, pensei duas vezes antes de abordar o assunto política. Afinal, além de correr o risco de me tornar antipático para alguém com quem estava tentando fazer negócio, que mais eu poderia esperar de um executivo de uma empresa como aquela se não que reproduzisse o discurso do taxista?

Enganei-me. Muito. Expus ao executivo Alfredo minha incompreensão sobre por que uma sociedade que está enriquecendo e se desenvolvendo odeia tanto aquele que está promovendo esse sucesso todo. Meu interlocutor assumiu um ar meio confidencial. Ele, bem como o presidente e toda diretoria da empresa acreditam cada vez mais na Venezuela, tanto que essa empresa vai investir mais de dois milhões de dólares até o fim deste ano. Não existe o menor medo de “cubanização “ do país. Então, Alfredo me explicou por que outras empresas, a classe dirigente que está ganhando dinheiro como nunca, incita o medo da classe média baixa, arrastando-a às ruas e apoiando o golpismo da mídia e da oposição.


“Esta empresa, Eduardo, trabalha estritamente dentro da lei. Veja que não teremos dificuldade nenhuma de importar de vocês ou seja lá de quem for. Com centralização do câmbio e tudo mais. Pagamos nossos impostos rigorosamente em dia, pagamos corretamente os direitos trabalhistas de nossos funcionários e lhes damos os benefícios trabalhistas que o governo exige. Então, não temos problemas. Agora, empresas que estavam acostumadas a poupar para si dinheiro de impostos, a prejudicar seus empregados, a mandar dinheiro para fora do país, essas estão com problemas. Para nós, não haverá ‘cubanização’ alguma. Haverá o que há nos EUA, na Alemanha, na Inglaterra... Teremos, todos, que trabalhar dentro da lei ou o Estado nos quebrará”

Alfredo contou-me que não votou na última eleição presidencial porque estava fora do país, mas, se votasse, não votaria em Chávez, porque, com ou sem ele, o caminho de progresso da Venezuela tornou-se irreversível – graças a Chávez. Assim, sem Chávez no poder, talvez sobrevenha uma pacificação da Venezuela, ainda que tema a reação das classes baixas, aqueles que pessoas que vêm à Venezuela tratar de negócios dificilmente vêem, pois estão nos morros que circundam Caracas, por exemplo, trabalhando nas “misiones” chavistas, enfim, são aqueles que nada têm a perder com ou sem “cubanização”.

Segundo Alfredo, a resposta à minha dúvida sobre por que uma classe média que está sendo beneficiada economicamente se atira com tanta fúria contra o indutor desses benefícios, é a de que essas pessoas têm medo. Tudo se resume a medo do desconhecido. Medo por parte de empresas que só cresceram às custas da sonegação, da corrupção e da exploração dos empregados. Medo de não conseguirem se manter sem esses “instrumentos”. E medo da famigerada “cubanização “, de mesmo pessoas que só tem uma casinha e um carrinho perderem o pouco que têm. Por isso, quem apóia Chávez são aqueles que nada têm a perder. Esses não têm medo de nada além de continuarem como ainda estão, apesar de estarem melhorando devagarzinho

Ainda tenho uma semana aqui na Venezuela, a partir de amanhã. Quero saber mais. Quero falar, também, com os satisfeitos. Só terei que ir aos morros. Mas penso que já entendi o que está acontecendo na Venezuela. Espero que tenha sido claro o suficiente para vocês entenderem também.

Volto assim que for possível, que agora tenho que defender meu ganha-pão.



Escrito por Eduardo Guimarães no dia 15/08/2007, no seu blog
http://edu.guim.blog.uol.com.br

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