Meus Cumprimentos

É melhor atirar-se à luta em busca de dias melhores, mesmo correndo o risco de perder tudo, do que permanecer estático, como os pobres de espírito, que não lutam, mas também não vencem, que não conhecem a dor da derrota, nem a glória de ressurgir dos escombros. Esses pobres de espírito, ao final de sua jornada na Terra, não agradecem a Deus por terem vivido, mas desculpam-se perante Ele, por terem apenas passado pela vida...
Bob Marley

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Entendendo a Venezuela (3)

O poder de Chávez

Imagine, primeiro, o presidente Lula no Congresso discursando em rede nacional de rádio e televisão. Ele está descontraído. Enquanto fala, faz gracejos com os presentes. Parece estar numa roda de amigos. Porém, trata de assunto muito sério: está propondo uma profunda reforma da Constituição. Entre as medidas anunciadas, sobressaem as seguintes
· Aumento em 1 ano do mandato dos presidentes da República.
· Possibilidade de os presidentes da República reelegerem-se quantas vezes conseguirem.
· Inscrição na Constituição de cláusula proibindo o latifúndio
· Inscrição na Constituição de cláusula que proíbe qualquer “autonomia” do Banco Central e determinando que os controles dessa instituição sobre a economia do país serão exercidos pelo Poder Executivo e por aquele Banco - conjuntamente.
· Redução da jornada de trabalho de 44 para 36 horas semanais, ou de 8 para 6 horas diárias, sem absolutamente nenhum prejuízo para os salários dos trabalhadores.
· Criação de um fundo que amparará todos os trabalhadores autônomos - como taxistas ou empregadas domésticas - quando se aposentarem ou por invalidez ou por doença, independentemente de terem contribuído para a Previdência.
· Possibilidade de o governo central reformular a divisão territorial do país e criar territórios federais.

Agora imagine que, durante a cerimônia de propositura de dezenas de alterações profundas na Constituição, o presidente faça pausas para atacar seus opositores da imprensa e da oposição, chamando-os, por exemplo, de “golpistas” em rede nacional de rádio e tevê e recomendando a eles que, se se preocuparem com o que está anunciando, que tomem calmantes.

Depois de tudo isso, imagine que, nas ruas do país, nas estações de metrô, nos pontos de ônibus, em toda parte você veja o rosto sorridente do presidente da República com os olhos postos no infinito. E imagine, finalmente, que, além de convocar, quase toda semana, cadeias de rádio e tevê durante horas, o presidente tenha dois canais de tevê nos quais, em programas sobre política, as críticas da mídia e da oposição serão rebatidas uma a uma, e os donos dos meios de comunicação serão citados nominalmente e receberão de volta os insultos e acusações que tiverem feito ao governo e ao titular desse governo.

Se Lula fizesse uma só dessas coisas, seria derrubado no dia seguinte. No Brasil, o atual presidente da República agüenta insultos de toda sorte. Chamam-no de “cachaceiro”, de “ignorante”, de “corrupto” e até de “assassino” e ele nem sequer responde. Quando muito, limita-se a insinuações contra seus agressores da imprensa, da oposição e de movimentos de ricaços que se dizem “cansados” de seu governo.

Tudo o que relatei acima, é inconcebível que aconteça no Brasil, mas acontece na Venezuela. Diante disso, muitos dirão que estavam certos – e eu, errado – quando diziam – e quando continuam dizendo – que Chávez é um “ditador”. Eu, porém, continuo discordando. E pretendo demonstrar por que penso assim valendo-me de fatos incontestáveis, que relatarei mantendo a esperança de que acreditem em mim quando lhes garanto que estou relatando exatamente o que estou vendo aqui na Venezuela, pois pretendo oferecer-lhes uma visão correta da situação desta sociedade e do processo histórico que está ocorrendo aqui e que começa a se espalhar por toda América Latina, e que, daqui deste continente, talvez se espalhe pelo mundo – ou, melhor dizendo, pelo Terceiro Mundo.

Dizem que Chávez é “ditador” por conta dos poderes discricionários que acumulou e que exerce em sua plenitude. Mas não dizem como ou por que o presidente da Venezuela acumulou tais poderes. E não dizem que Chávez faz o que faz, mas seus inimigos não estão sendo acuados ou calados. Pelo contrário. Eles vão à tevê, às rádios, aos jornais e às ruas e o insultam de todas as formas. Alguns pregam abertamente o magnicídio (assassinato de chefes de Estado). Chamam-no de ladrão, de corrupto, de demente e de outras coisas impublicáveis. E ninguém vai preso, como iria numa ditadura. A mídia brasileira ou a venezuelana não contam nada disso, mas eu contarei.

Quantos será que sabem que os antecessores de Chávez levaram uma enorme maioria dos venezuelanos a um paroxismo de indignação por usarem a infindável riqueza petrolífera deste país para enriquecerem uma parcela amplamente minoritária da sociedade enquanto a maioria dos cidadãos deste país mergulhava numa pobreza imoral e era empurrada, por exemplo, para os morros que circundam Caracas, para vegetar em “viviendas” precárias, em “barrios” sem saneamento básico, sem escolas, sem hospitais, sem segurança, em suma, sem a menor dignidade?

O coronel Hugo Chávez, que antes havia tentado um golpe de Estado - para, segundo ele mesmo, reverter a situação de miséria de seu povo que descrevi acima -, fracassou naquele golpe e, por isso, ficou preso durante dois anos. Mas será que alguém sabe que ele saiu do cárcere porque os venezuelanos exigiram sua libertação em manifestações de rua, em protestos de todo tipo?

Chávez chegou ao poder nos ombros de uma maioria avassaladora dos venezuelanos. Inclusive nos ombros de boa parte dos cidadãos de classe média baixa que hoje estão contra ele. E isso porque a oposição e a mídia que hoje o acusam, antes de ele chegar ao poder governavam a Venezuela contra todos os interesses do país. Alguém sabe que o petróleo venezuelano era vendido subsidiado aos EUA? Alguém consegue explicar por que um país com tanta pobreza vendia sua riqueza maior ao país mais rico do mundo abaixo dos preços internacionais e a mídia não dizia um A?

Não sei se muitos, aí no Brasil, sabem como foi que Chávez acumulou tanto poder. Então vou explicar como foi.

Depois da tentativa de golpe de Estado de 2002, sobreveio uma greve de trabalhadores da PDVSA (estatal de petróleo da Venezuela) que paralisou a economia de um país, até então, totalmente dependente do petróleo. O PIB chegou a cair cerca de 10% em um ano. Os sindicatos dos trabalhadores da PDVSA que se aliaram à oposição, ao empresariado e à mídia e que controlavam os trabalhadores da estatal venezuelana de petróleo tiveram seu poder esvaziado. Chávez, no decorrer de 2003, foi substituindo os empregados da PDVSA até que expurgou da empresa todos os vinculados aos seus opositores. No ano seguinte, ainda fragilizado, tendo que conviver com grandes marchas de oposicionistas e com a incitação contra ele por parte dos meios de comunicação, submeteu-se ao que queriam opositores que, dois anos antes, o haviam seqüestrado e anunciado que ele tinha “renunciado”; submeteu-se a um “referendo revogatório”, ou seja, os venezuelanos foram chamados às urnas para dizerem se queriam que o presidente do país continuasse no cargo ou não. Em agosto de 2004, o referendo aconteceu, como queriam a oposição, a mídia, o empresariado e considerável parte da sociedade. Sob pedidos de seus opositores, os mais importantes países do mundo, organizações não-governamentais, enfim, toda sorte de governos e instituições enviaram observadores para atestarem – ou não – a lisura do pleito que decidiria se o presidente da Venezuela seria mantido no cargo pela vontade popular. Chávez venceu por maioria esmagadora e todos aqueles observadores atestaram que venceu de forma limpa.

Apesar de todas as exigências dos opositores de Chávez terem sido atendidas, eles não aceitaram o resultado do referendo. Passaram a acusar uma fraude eleitoral que ninguém viu, da qual não havia o menor indício. Para que se tenha uma idéia, até o governo norte-americano, inimigo visceral de Chávez, reconheceu sua vitória. Contudo, a oposição, a mídia e os setores amplos – porém minoritários – da sociedade que queriam defenestrar o presidente, permaneceram irredutíveis.

No ano seguinte (2005), haveria eleições parlamentares. Os opositores de Chávez, então, viram aí a possibilidade de criarem um impasse institucional. Recusaram-se a participar da eleição de representantes no Congresso na esperança de que a votação não conseguisse o número mínimo de votos para validar-se. Ocorreu o inverso. Os partidos que apoiavam Chávez conseguiram o comparecimento necessário para que a eleição de congressistas vingasse, de maneira que a Assembléia Nacional foi quase que totalmente formada por chavistas, o que conferiu ao presidente venezuelano o poder que ele tem atualmente.

Discordo de uma situação na qual um presidente acumula tal poder. Atualmente, Chávez tem atendido seu povo, por mais que digam que não. Ele, por exemplo, estatizou a empresa de eletricidade “Eletricidad de Caracas”, que era privada como a empresa “Eletricidad de Valencia”, e, agora, os venezuelanos da Capital Federal pagam muito menos pela energia elétrica. Foi estatizada a empresa de telecomunicações Cantv, e os venezuelanos estão pagando menos pela telefonia. Foram criadas “Misiones”, postos do governo que provêem saúde, educação aos venezuelanos pobres como nunca tinham recebido. Uma das “Misiones”, a “Misión Robinson”, em dois anos conseguiu pôr fim ao analfabetismo na Venezuela e a Unesco, da ONU, atestou que isso de fato ocorreu. O salário mínimo foi elevado a cerca de 300 dólares... Contudo, se Chávez – ou algum sucessor seu – usar mal o poder que o governo central está acumulando, ninguém terá como fazer frente a eventuais desmandos.

Mas o que levou os venezuelanos a entregarem tanto poder a Chávez se não o fato de que ele os beneficiou como nenhum de seus antecessores havia jamais feito? Além disso, que ninguém se esqueça – ou deixe de saber – que as reformas propostas por ele à Constituição terão que ser aprovadas por um referendo popular. Repito: tudo o que Chávez propôs ao Congresso na quarta-feira passada, terá que ser aprovado pelos venezuelanos nas urnas.

Enquanto o poder de Chávez aumenta a cada dia, no entanto, seus opositores, a exemplo dos opositores de Lula no Brasil, continuam apostando em velhas fórmulas que fracassaram miseravelmente e que só fazem aumentar o poder (já enorme) do presidente da Venezuela e o apoio (irredutível) do presidente do Brasil. E por que? Porque esses opositores continuam mentindo e distorcendo os fatos compulsivamente. Continuam esbofeteando a maioria do povo, chamando-o de ignorante e inculto por votar como uma parte minoritária da sociedade não quer, e continuam contando mentiras escandalosamente evidentes, como se todos fossem retardados.

O poder de Chávez não pára de crescer, e o que induz esse crescimento, além da dedicação integral do presidente aos interesses da maioria eternamente oprimida dos venezuelanos, é a arrogância de setores daquela sociedade que sempre se beneficiaram da exclusão dos mais pobres e agora não se dispõem, de maneira alguma, a abaixarem um pouco suas cristas e a negociarem os anéis para preservarem os dedos. O poder de Chávez não pára de crescer porque seus inimigos tratam de adubá-lo diariamente, com o desvelo com que um jardineiro cuida de seu jardim.

Os morros de Caracas

Estou há quase uma semana na Venezuela e ainda não consegui localizar um só chavista convicto. Esse fenômeno, no entanto, me foi explicado pelos anti-Chávez que tenho encontrado. Eles dizem que os chavistas estão no interior e nas periferias. No caso de Caracas, nos morros que circundam a cidade.

Vale dizer que Caracas tem uns quatro milhões de habitantes, sendo que pouco mais de um terço vive na “cidade baixa” e o resto vive nos morros.

No fim de semana que se apresenta, pretendo ir a esses morros ouvir a versão dos chavistas. No entanto, tenho sido alertado por todos com quem falo (clientes, taxistas, recepcionistas do hotel etc) de que fazê-lo será “extremamente perigoso”. Dizem-me que os morros estão cheios de “bandidos” e “delinqüentes” que atacam pessoas de minha classe social para roubar ou até por pura “raiva”.

Subir aos morros de Caracas, à pobreza, é perigoso? Sim, talvez seja. O problema é que se essa parte mais privilegiada da sociedade caraquenha não subir aos morros de Caracas, os morros de Caracas descerão até ela. Assim sendo, subirei até os pobres desta cidade para escutar o que têm a dizer. Sinto-me na obrigação de fazê-lo, a despeito dos eventuais riscos.
Escrito por Eduardo Guimarães no dia 17/08/2007, no seu blog http://edu.guim.blog.uol.com.br/

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